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UMA CASA, UM PALÁCIO: LE CORBUSIER NA INDIA

 

* O mesmo texto analisa a Casa Shodan e o da Assoc. da Indústria Têxtil

 

Em 1928 Le Corbusier realizou uma exposição e publicou um livro intitulados Une maison. Un palais : a la recherche d'une unité architecturale, nos quais apresentava e discutia sua produção de até então. Não fica muito claro se a primeira parte do título aludia à famosa comparação de Alberti (uma casa é uma pequena cidade, uma cidade é uma casa grande) ou se sugeria que uma casa deveria ter a dignidade de um palácio, ao mesmo tempo que um palácio deveria ter algo do aconhego de uma casa. De qualquer modo, os dois edifícios discutidos aqui se encaixam perfeitamente naquele título, um sendo uma residência e o outro, um edifício institucional com toda a intenção representativa de um palácio.[1]

 

Ahmedabad era, em meados do século passado, o centro têxtil da India e uma cidade com amplas ambições culturais. Isso fez com que sua elite empresarial e cultural se aproximasse de Le Corbusier, então envolvido no projeto de Chandigarh, para projetar alguns edifícios residenciais e institucionais.

 

Apesar de servirem programas muito diferentes, a casa Shodan e a sede da Associação da Indústria Têxtil compartilham muitas características formais e espaciais. Ambos edifícios são genericamente cubos virtuais definidos pela grelha estrutural (o esquema Dom-Ino evoluído) e pelos elementos de proteção solar. Sua construção, rústica se comparada com o modo europeu de construir, revela uma feliz conjunção das condições tecnológicas locais com o interesse de Le Corbusier por tecnologias mais primitivas. Pode-se dizer que constituem uma síntese de elementos e estratégias usadas em várias outras casas de Le Corbusier [2] – tais como a estrutura independente, promenade baseada em rampas, brise soleil, pé-direitos duplos (isolados ou interpenetrados em corte), cobertura-terraço – adaptadas a diferentes condições climáticas, sociais e tecnológicas, com meios tradicionais locais de controle ambiental, como a cobertura dupla, beirais e sacadas, fachadas profundas, salões altos com múltiplos pilares e treliças.

 

Embora a produção indiana de Le Corbusier seja fisionomicamente muito diferente das casas francesas do chamado período branco (Cook, Stein, Savoie, etc) conceitualmente a casa Shodhan e a Associação são exemplos daquilo que foi considerado por Kenneth Frampton como talvez a principal contribuição de Le Corbusier à arquitetura moderna: a reconciliação do conforto privado, normalmente associado à informalidade, com a imagem pública provida pela ordem arquitetônica baseada na abstração e na elementaridade. De acordo com Alan Colqhoun, a obra tardia de Le Corbusier combina a forma platônica externa com arranjos internos funcionais.

 

Nessa década de intensa atividade para o mestre franco-suiço, alguns aspectos da sua arquitetura chegam ao seu ápice e a partir daí não se modificam mais. Por exemplo, nos dois edifícios há um desenvolvimento pleno dos brise soleil como elementos independentes da estrutura.[3] Além do papel óbvio e essencial que desenpenham, eles recuperam o espaço de transição entre interior e exterior que a “pele de vidro”, característica do século vinte, havia eliminado.

 

A casa Shodhan

 

Considerando o histórico do projeto, é surpreendente que a casa Shodhan tenha chegado a bom termo. Inicialmente contratado por Surottam Hutheesing, então presidente da Associação da Indústria Têxtil, o projeto muda de dono e de lugar ao longo do seu desenvolvimento. Hutheesing, após vários desacertos com Le Corbusier, vende o projeto ao seu amigo Shiamubhai Shodhan, que o aceita sem modificações, embora o projeto, que antes abrigaria uma pessoa solteira, passe a servir uma família.

 

O terreno, resultado da união de três parcelas menores, é anódino, sem nada que pudesse servir de referência além da sua orientação solar, da direção dos ventos e da relação com o acesso.  A combinação da posição do volume cúbico com o caminho curvilíneo determina que a casa nunca seja vista frontalmente, sempre oferecendo duas fachadas ao visitante, um modo indireto de aproximação que deve muito ao paisagismo inglês com o qual os indianos estavam acostumados.

 

Diferentemente dos precedentes franceses, a casa Shodham não é um cubo definido por superfícies planas. Sua vitalidade deriva da sua porosidade, da juxtaposição de volumes simples, duplos e triplos que se relacionam em corte sob a proteção de um “guarda-sol” de concreto. Isso lhe confere um caráter robusto, permeável e escultural. A cobertura externa, o mencionado “guarda-sol”, pode ter muitas origens – sabe-se que Le Corbusier era muito curioso e atento – mas é interessante notar que há na India um tipo de construção muito presente, as mandapas, pavilhões abertos lateralmente nos quais a cobertura é sustentada por muitos pilares, utilizados para muito tipos de rituais, cuja constituição garante sombra e circulação do ar.

 

A organização do volume é até certo ponto complexa. Uma grelha estrutural com 12 (3x4) módulos de 4,9x3,8m é o ponto de partida, mas logo um dos módulos de 3,8 é reduzido para 2,3m para receber a rampa. O retângulo assim estabelecido é envolvido por faixas menores: 1,6m no lado do acesso, 1,3m nas duas laterais e 2,5m no lado oposto, onde há brises profundos. Coisa parecida acontece no bloco de serviço: quatro módulos de 4,9x3,8m são envolvidos por faixas menores, sendo a grelha defasada em relação à da casa em 2,3m.

 

Entra-se na casa pelo nordeste, por um hall com pé-direito duplo cujo foco visual é a rampa. Dali se pode entrar na cozinha, subir a rampa ou chegar ao grande estar e a sala de jantar, ambos também com pé-direito duplo. Sobre o térreo há um entrepiso que abriga uma suite com mezanino e sacada e um escritório que se projeta como uma ponte sobre o estar. No nível seguinte há mais duas suites, a parte superior da suite do segundo nível e um primeiro terraço, que ocupa aproximadamente ¼ da planta. Nos dois próximos níveis, com exceção de um estúdio ligado por escada a uma suite inferior, toda a área é exterior e de uso comum, com conexões entre si que proporcionam vistas dramáticas.

 

Associação da Indústria Têxtil

 

O projeto deste edifício é o que leva Le Corbusier a Ahmedabad e acaba proporcionando outros trabalhos para sócios da Associação. Seu produto final é uma grande casa ou pequeno palácio que é utilizado mais como um clube exclusivo dedicado à reuniões de negócio, recepções e palestras, e que também desempenha um certo papel simbólico e institucional. O programa da sede da Associação da Indústria Têxtil incluia escritórios, salas de aula, refeitório, auditório e espaços genéricos dedicados a festas e exposições. Esse edifício pode também ser visto como a materialização do prestígio social e do poder da elite ligada à produção têxtil.

 

Ao contrário do sítio onde foi construída a casa Shodhan, a Associação está localizada na margem oeste do rio Sabarmati e muito próxima a ele. Talvez essa localização explique a maior atenção dada às fachadas voltadas para a cidade e o rio, tridimensionais e articuladas, enquanto as empenas laterais são cegas, um arranjo que lembra a casa Stein-de Monzie.

 

A retícula sobre a qual se organiza o projeto é um pouco mais simples do que a da Shodhan, embora a planta também seja organizada em 12 módulos (4x3), 3 no sentido L-O, medindo 6,5-7,6-6,5m, e 4 no sentido N-S, medindo 6,5-7,0-7,0-6,5m. Ou seja, apenas os módulos nos quatro cantos são quadrados, com 6,5m de lado. Fiel ao esquema Dom-ino original, nos lados abertos as lajes tem um balanço de 1,1m. O brise leste tem 1,75m de profundidade, enquanto no lado oeste o brise mede 2m.

 

A forma cúbica genérica do edifício é articulada por uma série de transformações localizadas, na maioria adições ao volume básico: a já mencionada prioridade dada às fachadas leste e oeste, a diferença de altura entre os pavimentos – o nível superior tem pé-direito que é 50% maior que o dos demais – rampa e escada externas, uma espécie de bay window a sul, os elementos na cobertura e o pequeno pavilhão de serviço anexo.

 

Sombreamento e circulação do ar continuam sendo objetivos importantes aqui mas dois outros aspectos são igualmente importantes. Por um lado, há um contraste tenso entre a grelha estrutural, objetos curvos, lajes horizontais e planos diagonais no interior de uma planta quase quadrada. Por outro lado, é muito clara a presença de uma circulação cênica, um percurso organizado que começa na rampa exterior e leva o visitante até a vista do rio, ao salão com pé-direito duplo e ao terraço jardim na cobertura.

 

Os dois edifícios aqui comentados fazem parte da obra madura de Le Corbusier, e demonstram a capacidade do arquiteto de se adaptar a situações e culturas  locais bem diferentes da sua e de absorver tradições locais importantes – como dormir em terraços exteriores e criar espaços externos cobertos – integrando-as de tal maneira à sua arquitetura que ficam parecendo suas invenções. Essa síntese do universal com o local, essa espécie de “localização” da arquitetura moderna constitui uma das lições mais importantes dessas obras de pequeno tamanho mas grande importância.

 

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Edson da Cunha Mahfuz é arquiteto e professor de projetos na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.

 

Texto originalmente publicado em Summa+, nº 151, Buenos Aires, julho, 2016

 

 

[1] Além desses dois, Le Corbusier ainda construiu em Ahmedabad outra residência, a casa Sarabhai, e o Museu de Miniaturas N. C. Mehta.

[2] O próprio Le Corbusier teria descrito a casa Shodhan como sendo a Ville Savoie num cenário tropical.

[3] O mesmo tipo de brise soleil profundo aparece no projeto não construído da Embaixada Francesa em Brasília e no seu único edifício construído nos Estados Unidos, o Carpenter Center for the Visual Arts.

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